Sobre o drama dos refugiados.
Às vezes apareciam no telejornal imagens de crianças africanas subnutridas. Miúdos de barrigas dilatadas, com moscas e sujidade na cara, ao colo de mães tristes, de mamas murchas, que lhes caiam, vazias, no corpo esquelético. A minha mãe, voltava a cara, ai mudem-me isso, que não consigo ver tanta desgraça. Um de nós levantava-se e mudava para o segundo canal e fingíamos que mundo era um sitio com as mesmas assoalhadas de conforto e conveniência que a nossa casa. E éramos todos boas pessoas. Criaturas incapazes de lidar com um mundo esfacelado que no entrava pela sala dentro e se sentava sem pedir licença nos sofás com panos de crochet nos braços. Porque no momento em que a vida nos entra assim pelas consciência adentro , sabemos podemos ser nós. E baixamos os olhos, com o instinto de sobrevivência a dizer-nos baixinho, ainda bem que não somos. Nas últimas semanas temos acompanhado, confortavelmente impotentes, o drama dos refugiados. Pais que passam os filhos por cima de arame farpado, crianças sozinhas a caminharem na linha de comboio, pessoas que se atropelam desesperadas por um lugar numa carruagem, o corpo de uma criança de três anos numa praia. Um corpo vestido como vestiríamos o nosso filho para ir para o infantário, e novamente sabemos que podíamos ser nós. Nós. Num outro mundo, onde apenas se luta por vida e não pela vidinha melhor dos dias. Num mundo onde o desconhecido, apesar de tudo, tresanda menos a morte que aquilo que conhecem e por isso se torna na única opção. Já não podemos mudar o canal. Já não nos podemos mentir, nem olhar para o lado, porque a partir do momento em que sabemos, passamos a levar a esperança dos outros nas mãos. E resta-nos fazer o que é certo.