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Nunca conheci quem tivesse levado porrada. Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.
Nunca conheci quem tivesse levado porrada. Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.
A prima Odete embirrava solenemente com Domingos. Eram uma pasmaceira, não passava nada de jeito na televisão e tinha de cumprir o frete de ir à missa com a mãe, que o pai tinha sempre alguma coisa para arranjar em casa ou o carro para limpar e a irmã tinha aquela conversa cansativa da religião ser o ópio do povo.
Para além de tudo isso era uma maçada de um dia, pois estava tudo fechado, nem para comprar tabaco, o que implicava que ao sábado tivesse de comprar maços a fazer com conta com Domingo. Pão, só o do dia anterior torrado ou então as carcaças que a tia Maria Adelina congelava à sexta-feira. E bica nem vê-la.
Foi portanto uma alegria para a prima Odete quando, em mil novecentos e oitenta e cinco, abriu uma grande pastelaria ao fundo da rua, que tinha pão de forma fresco (a um preço exorbitante, segundo a Tia Maria Adelina) e ficava aberta até às seis da tarde de Domingo.
- Agora só falta haver um supermercado aberto ao Domingo – comentou a prima Odete, em tom de vitória.
A prima Maria Isabel deu-lhe uma grande prédica sobre os direitos dos trabalhadores, sobre o egoísmo do consumismo ( o tio Macedo achou muita piada a esta rima), que, só porque lhe dava jeito ter onde ir beber a bica e comprar tabaco, não podia lixar a vida aos outros.
A prima Odete suspirou e revirou os olhos, não havia paciência para as coerências da irmã.
E a tia Maria Adelina pegou no saco de pão duro e enquanto dava um beijinho a cada uma das carcaças antes de as deitar fora, disse:
- Sempre vivemos com tudo fechado ao Domingo e ninguém morria. O que é uma dor de alma é deitar pão fora, assim desta maneira.
- Os Domingos doem-me mais – retorquiu a prima Odete.
Ao contrário da Prima Odete, que vivia para esta altura do ano, a prima Maria Isabel tinha uma embirração particular pelo mês de Dezembro. Não gostava de bacalhau, achava que o Natal era mais uma forma de opressão pelo consumo desenfreado, dizia que o Pai Natal era apenas uma caricatura da água suja do capitalismo americano e no que dizia respeito à religião, limitava-se a revirar os olhos.
Mas, na verdade, a embirração da prima Maria Isabel tinha a ver com uma certa tristeza que os dias curtos cheios de humidade e cheiro a fritos lhe causavam. A pastelaria onde bebia café a meio da manhã todos os dias tresandava a azevias e filhós a partir de dia nove de Dezembro. Eram dias de uma certa agonia.
- É o costume – dizia para o empregado de bigode, ao chegar ao balcão.
Este gritava, “Sai bica! “ e lembrava-a que só aceitavam encomendas de Bolo-rei até dia vinte e um.
A prima Maria Isabel agradecia e acrescentava.
- Não sou grande apreciadora de frutas cristalizadas.
Facto que mudou em Dezembro de mil novecentos e noventa e dois, quando, na Confeitaria Nacional, conheceu o Nuno Maria. Afortunado encontro que lhe trouxe as maravilhas da casca de laranja cristalizada com chocolate e um grande amor e assim lhe superou para o resto da vida a melancolia causada pela mudança da hora de Inverno e alguns assentos à direita da bancada parlamentar. Mas, até morrer, a prima Maria Isabel recusou-se a compactuar com a história do Pai Natal e a fazer o presépio, dizendo:
- É nos detalhes que se revelam os princípios de cada um. O resto é a vida.